O Bébi tinha uma fábrica de vassouras de palha ali na Rua da Cadeia. Magro, grisalho, usava chapéu de palha de trigo para não pegar sol. Era nascido como Victório José Thomazoni, mas, como todo o José, era Bépi! Dona Djélci, que as vizinhas chamavam de "Djéma" (Gema), chegara ao mundo como Gelsemina Biondaro, mas as vizinhas só a conheciam cmo Djélci , que era più fàcile da dire! Era uma senhora cordata, mas firme em sua opinião. Reservada, não era de ficar mostrando os dentes à toa. Nós a respeitávamos. Era mãe de dois amigos, Mário e Arlindo. Também da Nina, uma moça prendada. Com eles, jogávamos bola e brincávamos "de Índio". Os meninos utilizavam as hastes das vassouras para fazer flechas. Na ponta, colocavam ponteiras feitas habilmente com panos para não ferir os "soldados" nas brincadeiras. Um terreno da família De Paoli, onde havia uma pilha grande de tijolos, era utilizado para a "guerra". Com os tijolos, construímos um forte. Agitávamos o "pedaço". Todos queriam ser índios, porque estes matavam os soldados, aprendêramos assim no Farroupilha e no Glória, nossos cinemas. Ao lado do forte, um espaço de terra bem socada que comportava uma trave. Jogávamos "campeonatos" de futebol. Muito divertimento!
De dia, muita brincadeira para saciar nossa energia e vontade de brincar, principalmente na Primavera e no Verão quando demorava um pouco mais para anoitecer. E, em algumas noites, nos reuníamos em nossa "Sede". A Sede nós fizemos num grande mutirão juvenil. Era uma saleta ao lado da seção de fabricação das vassouras da família Thomazoni, no porão do Bépi. Nós mesmos fizemos a escavação da terra para instalar a sala, feita com madeiras que sobraram da construção da casa. Devia ter uns 12 metros quadrados e tinha uma lâmpada ao centro. Ao redor, bancos feitos com tábuas de madeira de pinheiro "de terceira". Era nosso santuário. Ali, nos reuníamos para combinar nossas promoções e programar os jogos da S.E. Palmeiras, nosso Palmeirinhas da Rua da Cadeia.
Vez por outra, Dona Djélci e Seu Bépi vinham ver nossas reuniões. E, de futebol, para causos, tudo era muito rápido. Os "velhos" sabiam de muitas histórias. Falavam das assombrações, do Sanguanel e das panelas de dinheiro. Nós, ouvíamos assustados; "Lá nas bandas da Entrada do Campo tinha um fazendeiro muito rico. Ele escondia o seu dinheiro em vasilhas de ferro, de alumínio ou mesmo de barro e as enterrava. Morreu sem contar aos familiares onde havia escondido seus tesouros. Uma panela bem grande, cheia de moedas de ouro, jamais fora localizada...," dizia o vassoureiro. A esposa, muito séria, concordava com ele e emendava:
"Muitas pessoas já foram para aqueles lados para procurar a "panela de dinheiro". Vão de noite, que é para que ninguém os veja. Mas, para proteger a panela, o espírito do fazendeiro está sempre rondando por lá. E fica escondido atrás de uma taipa ou de um umbuzeiro. Quando percebe que há gente tentando cavar buracos com uma picareta e pá, pula sobre eles. O espírito é todo vestido de branco. É uma alma penada que não quer que mexam no seu dinheiro. E, quem é assustado pela alma do fazendeiro, se não for rezar três Aves-marias, um Glória e um Padre-nosso, na primeira igreja ou gruta que tenha uma imagem de Nossa Senhora, morre na certa!"
E nós, adolescentes entre 12 e 17 anos, ficávamos muito assustados, aquilo era de arrepiar. Dona Djélci era uma mulher muito séria, devota de Nossa Senhora, fazia parte do Apostolado da Oração e não mentiria, nunca! Só poderia ser verdade, aquilo. Terminava uma história e vinha outra. Falavam do Sanguanel, que era um diabinho preto com roupas vermelhas e que vinha buscar as crianças que não rezavam e nem obedeciam.... Tinha também a Mula-sem-cabeça, que aparecia nas curvas das estradas... Meus Deus, quanto medo!!!
Numa dessas ocasiões, fui para casa muito asssustado. Já ia com medo do escuro. Nos postes, uma iluminação muito acanhada. Demorei para pegar no sono. Fiquei imaginando como seria o Sanguanel, a dita Mula-sem-cabeça, a alma do fazendeiro e outras coisas mais. Será que a alma vinha coberta com um lençõl branco ou com uma túnica preta? Até vinha sonhando com essas criaturas do Demônio. Imagine agora, então, depois de ouvir tudo aquilo! E, quando foi lá pela madrugada, um galo que estava dormindo debaixo do assoalho da nossa casa de madeira, assanhou-se para puxar os primeiros cantares do dia, o despertador natural das famílias que nem tinham relógio em casa. Ao bater as suas asas, fez um barulhão que me acordou. Fiquei apavorado, gritei, acordei meus pais e irmãos. Achei que o Diabo estava ali a querer me ferrar..
Serenados meus ânimos, disseram-me que era apenas o galo velho, tentei dormir até a hora de levantar-me, mas que nada! Rezei muito, até me arrependi de meus pecados, fiz um "ato de contrição", prometi ser bonzinho com minha mãe, ajudar a recolher lenha sempre que ela pedisse, e tirar água do poço com a manivela e deixar os dois baldes bem cheios antes da noite para poder lavar a louça e para o café da manhã. Mas não teve jeito, o dia veio sem que eu pegasse no sono.
Ah, fui muito medroso, sim, na minha adolescência. E não era para menos. Cada vez que quisessem nos amedrontar, nos contavam casos assim. E, os Thomazoni, não faziam isso por mal. Era costume as pessoas irem passando as histórias para a frente. E, como não existia TV e poucas famílias tinham rádio, uma das nossas diversões, à noite, era escutar as histórias horripilantes que os mais velhos nos contavam... Hoje, os adolescentess adoram filmes de terror, de histórias macabras. Mas eu prefiro ver comédias. E escutar bons casos que as pessoas me contam na rua, diariamente. Todos têm uma história interessante.
Euclides Riquetti
02-08-2014
Amigo Riquetti, fico grato e feliz com a homenagem que nos presta através da Crônica "Histórias de Dona Gema e do Seu Bépi" Senti-me criança ao lê-la e recordei-me no nosso tempo de infância, de tudo o que fazíamos e aprontávamos, das nossas brincadeiras, dentre as quais às de guerras índios contra os mocinhos rsrsrs. Valeu amigo. Estarei guardando-a com muito carinho. Grande abraço.
ResponderExcluirArlindo G. Tomazoni