Photo by Anddres
Ao final da década de 1990, sempre que ia a Joaçaba, passava
defronte a uma loja de carros. Belíssimos modelos expostos, para todos
os tamanhos de bolsos. Hatches, sedãs, caminhonetes dupladas nacionais e
possantes importados, exuberantes, todos. Eu ficava embasbacado diante
de tanto luxo e modernidade. Depois que aquelle presidente falou que só
fabricávamos carroças, nossos criativos engenheiros e desenhistas (não
conhecíamos os "designers"ainda), passaram a criar bólidos sofisticados
para não apanhar dos modelos alemães, japoneses, americanos e
franceses.
E as indústrias montadoras, aproveitando as facilidades de
financiaments oferecidas pelo Governo Brasileiro, visualizaram a
oportunidade de ganhar muito dinheiro. E, cada vez mais protegidas pelo
Poder, mais dinheiro ganharam e mais ainda ganham agora. Você compra o
carro de seus sonhos, sem avalista, num piscar de olhos, e vai ajudar a
entopetar as estreitas ruas das cidades, enquanto as autoridades ficam
tentando achar fórmulas de facilitar a mobilidade urbana, Aliás, esse
termo já está na relação dos ultrapassados, fala-se, no momento, em
mobilidade humana, o que, aliás,é muito correto, pois precisamos
primeiro pensar no ser humano e depois na máquina. Esta fica prioridade
de governos, pois lhe garante fartura na arrecadação de tributos.
Parei uma vez nessa loja e fiz amizade com o proprietário.
Pareceu-me uma pessoa boa e honesta aquele senhor de fala calma e
respeitosa. Demonstrava conhecer o mercado dos automóveis, sabia quanto
pagar por um seminovo inteiraço e também quanto pedir no momento da
venda. Trabalhava com um estoque de veículos de não mais que 20
unidades, o que, para a época, era bastante. Compraria meu usado de
dois anos e me venderia um semi com baixíssima quilometragem, seguiríamos
a Tabela 4 Rodas, a confiável na época e na qual todos se pautavam.
Claro que teríamos que considerar um ganho real de pelo menos uns 5%
para ele, com o que eu concordava. Voltaria mais adiante, outras vezes,
para fecharmos negócio.
Passados dois meses, quando senti que era hora de fazer
negócio, voltei lá. O ambiente parecia modificado, não havia mais tantos
carros, a loja parecia acanhada. Um rapaz, com uma caneta, rabiscava
umas folhas de papel, escrevia frases, riscava, mudava, parecia não
estar satisfeito com aqueles escritos a que tentava dar forma. Estava
compondo uma poesia...
Simpatizei com ele, disse que eu também gostava de fazer
poemas, que tinha aqueles dias em que tudo me vinha com facilidade,
outros nem tanto... Senti empatia e em minutos falávamos como se velhos
amigos já fôssemos. Acho que os poetas devem ter algo que os atrai, une,
coloca a andar num mesmo caminho, independente de fazerem ou não algum
esforço para isso. Perguntei pelo proprietário e senti uma expressão
muito triste e uma fragilidade enorme em suas palavras. Aquele rapaz
forte, estimulado pela sua veia de poeta, transformava-se... e
transtornava-se! Disse-me que seu pai falecera recentemente ,que havia
comprado um carrão numa cidade vizinha e que, ao buscá-lo, tivera um
acidente e perdera a vida. As lágrimas brotaram dos olhos daquele jovem
poeta, que deixava a sensibilidade transbordar de sua alma para
alojar-se nos versos que caminhavam pelas linhas de um caderno
universitário.
Tentei animá-lo, disse-lhe que seu pai fora uma pessoa boa,
que seguramente havia encontrado um lugar muito bonito e agradável na
Glória Eterna, para onde vão os que fizeram o bem aqui na terra. Pedi
para ver seus poemas e ele recobrou-se, gentilmente me apresentava a
seus versos livres e brancos, a suas redondilhas, aos seus alexandrinos.
Fiquei maravilhado! Emendamos a conversa e descobri que, com a perda do
pai, trancara a faculdade na cidade onde estudava e voltara para ajudar
a mãe a cuidar dos negócios.
Saí de lá muito pensativo e muito triste. Comentei com uns
amigos sobre isso e tinha uma preocupação: nunca vira um poeta dar-se
bem nos negócios. Negociantes tomam decisões com a razão, têm
habilidades matemáticas, são ágeis no argumentar e rápidos no convencer.
Poetas raciocinam com a alma, entre ganhar e perder optam por perder,
antes de magoar alguém. Verdadeiros poetas têm aguçados sentimentos,
olham muito mais para o outro do que para si mesmos. Enquanto os
primeiros vivem a realidade, nós, poetas, vivemos o sonho... E parece
que, não raras vezes, este tolhe nossa capacidade de organizarmos
nossas ideias em relacão a prover nosso sustento. Lembro-me do colega
de República e de curso de Letras na Fafi, Francisco Samonek, o moço de
Rio Azul, que escreveu o poema: "Poeta ou Matemático??" em que
transpirava o dilema do escritor diante de uma escolha...
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Tempos depois, passei por lá e já havia um novo proprietário.
Disse-me que o rapaz fora mal nos negócios, que a mãe ficara
doente, que não havia como continuar, passou-lhe o ponto e foi embora da
cidade. Duas décadas depois, percebi, através de que seus parentes
moram no mesmo bairro que eu, ( e me confirmaram minhas
suposições): poetas são apenas poetas. Têm muita riqueza em si mesmos.
Uma riqueza interior que dividem, gratuitamente, com todas as pessoas.
Ficam pagos pelos seus serviços apenas por sentirem que alguém lê seus
escritos. E que, muitas e muitas vezes, têm os pensamentos afinados,
navegam juntos no mar, flutuam pelos ares, sem mesmo sair de casa, sem
nunca se terem conhecido...Poetas são apenas.... poetas!
Euclides Riquetti
26-07-2013